Roda Pedaleira, a Lenda (Parte I)
Há factos que se vão acumulando na nossa vida. Traduzem-se em experiências boas e más, em gente boa ou não e em factos que, mesmo que o neguemos, vão definindo quem somos. Para este pedaço de texto recorro a dois factos bastante elementares e corriqueiros da minha vida, nas duas últimas décadas. De facto, há vinte anos que não ando de bicicleta e nos últimos vinte anos fui fumador. Obviamente, isto é dito de forma generalista: terei dado nesse tempo todo umas cinco ou seis pedaladas e terá havido dias, não muitos, em que apenas fumei um maço. A regra geral eram dois e, nos últimos anos, raro era o dia em que a coisa não chegava ao mágico número três.
Por isso quando, há poucas semanas, me convidaram para fazer a viagem entre o Porto e Santiago de Compostela, de bicicleta, comecei a fazer perguntas muito sérias sobre a minha vida: que mal tão grande terei feito ao Mundo para se quererem agora ver livres de mim, de forma tão dolorosa e ainda por cima longe de casa? Estará escrito que os meus pecados são tantos que têm que ser pagos a pedalar, porque a caminhar demorava demasiado tempo? Não, não sou assim tão mau diabo. Tinha que haver outro motivo e fui descobri-lo. A resposta, ao que parece, é simples: amizade. Há pessoas que, inexplicavelmente me consideram, acham boa companhia e querem bem. Sim senhor, é muito bom saber. Mas…então porque me querem fazer morrer, em cima de uma bicicleta (ou de uma bicicleta a baixo, não vem agora ao caso), pouco acima do Porto??
Naturalmente a reacção mais normal seria agradecer a lembrança, retribuir a amizade e encontrar uma forma simpática de dizer o não mais redondo que conseguisse. Por várias razões, e a minha mais que óbvia falta de preparação física seria apenas uma. Outros motivos, a começar pelo principal e mais incomodativo de todos: os fatos de ciclista são completamente bichanolas e amaricados (sinónimos aqui repetidos para reforçar a ideia). Imaginem um dançarino de ballet, com collants garridos e recortados pelo joelho e um penico reluzente na cabeça, e terão a imagem do ciclista moderno. Outros motivos fortes para recusar a proposta: hoje em dia andar numa bicicleta decente é mais caro que andar num carro decente; Santiago de Compostela não é no distrito do Porto e no Norte há, sobretudo, subidas.
Com estes contras todos, é mais que óbvio que…aceitei. É que há pessoas a quem não se diz que não, por muito humilhantes que possam ser as consequências. E no meu caso pessoal, a esmagadora maioria dessas pessoas são amigos de infância. Acresce a tudo isto o facto de eu ser particularmente teimoso quando me dizem que é impossível. E portanto, lá me comecei a preparar. Embora ache que só tem autoridade para se rir dos outros quem se consegue rir de si próprio, não é caso para exageros. Por isso, preservo para mim os detalhes da preparação física. Já em termos de equipamento tem sido uma roda viva e deixo-vos alguns dados que aprendi nos últimos dias. Nunca se sabe quando vos podem ser úteis. Aí vai então: há mais de 527 tipos diferentes de calções e todos são amaricados; nenhuma camisola de Lycra amaricada anula a barriga; as almofadas no rabo só resultam se o selim for bom; as consequências de um mau selim podem ser desastrosas; inventaram sapatos que encaixam nos pedais; quem usa esses sapatos afocinha no chão com uma frequência notável; os fatos amaricados fazem transpirar o dobro e, comprovadamente, ficam amaricados a qualquer um; escolher um simples bidão pode demorar uma hora; o peso ajuda a descer e é uma chatice incontornável a subir.
A viagem está marcada para o próximo fim de semana e, lúcido como me considero, isto pode ser uma carta de despedida. Ou não. Ainda há um mês aqui desancava quem faz férias activas e já depois disso tive as férias mais agitadas e felizes da minha vida. Nunca se sabe. E isto também pode simplesmente ser tudo inventado. Mas, pelo sim pelo não, se me deixarem de ver por aí…procurem algures acima do Porto. Ou então não procurem. É-me igual.